Primeira dose:
Eu quero é mais um litro de pinga aqui na mesa, Garçom. Mas tem que ser pinga mesmo. Daquela de esquentar até os sentimentos frívolos. Deixa eu te contar os meus problemas, que já não cabem nem em mim. Eles são tão grandes que não consigo nem descontar em alguém. Talvez não consiga nem contar pra você. É. Eles são complicados. Na realidade acho que quem é complicado aqui sou eu. Sou eu que não sou entendido e nem compreendido por ninguém. Parece que as pessoas até fazem de propósito. Me perguntam se estou bem e quando respondo que não, que estou morrendo, ninguém me entende. Dizem que sou dramático e um caçador-de-problemas-e-rabos-de-saia-problemáticos e outros inúmeros nomes compostos.
Segunda dose:
Eles também dizem que ando bebendo demais, fumando demais e sofrendo demais. Traz mais uma pra gente conversar melhor, colega. Porque você não senta? Ah! É mesmo. Você está trabalhando né? Mas mesmo assim, faz comigo o que todos fazem também? Finge que me escuta. Depois é só fingir que também me entende. Comigo é assim, na base do fingimento. Não é porque eu gosto. É porque eu preciso. Isso não é desde muito tempo atrás não, calma! Eu me tornei assim. Me adaptei, como todos os outros seres da natureza-selvagem. Desde quando aquela devassa passou na minha vida. Me oferecendo bebidas e cigarros a vontade. E essas nem eram as piores drogas que ela me oferecia! Aquela mulher me dopava com adrenalina e muitas alucinações. Mas o pior de tudo foi que tive uma overdose dela. Da mulher-devassa. Cheirava, bebia, injetava cada vez mais ela na minha vida. Eu tinha necessidade. Decorava cada parte do seu corpo. Pra mim ela era perfeita. Cada mínimo detalhe dela era perfeito. Até mesmo os defeitos.
Terceira dose:
Tô te atrapalhando muito amigo? Desculpa! Mesmo. O problema é que tô precisando de você. Tô precisando de seus serviços-alcoólicos-e-companheiros. Me escuta só mais um pouco. Só até o resto da minha vida. Acho que do jeito que anda nem dura muito não. Espera só um pouco. Continuando: O problema não foi que ela passou na minha vida. O problema foi eu querer continuar a viver mesmo depois dela ter ido embora. E levado todos os meus bens-sentimentais-e-psicológicos com ela. Acho até que ela levou mais que isso. O meu discernimento, entendimento e lucidez. Deve estar tudo na mala dela. Talvez até no lixo da cozinha do próximo dependente químico dela! Depois que ela passou eu sofri, chorei, sangrei e me curei. Ou pelo menos achei que tinha me curado. Não, Não! Eu não corri atrás dela. E nem pude também. Ela mudou de nome, telefone, planeta talvez. Acho que ela nem era daqui, desse. E mesmo que pudesse, acho que não lembro bem o rosto dela. Já passaram tantas outras drogas na minha cama e na minha veia. Não tenho boa memória. Nem muito menos, boas lembranças.
Quarta dose:
Irmão, eu sei que já tô caindo e tropeçando nas palavras. Mas é porque eu não quero voltar pra casa e ter que enganar minha mulher de novo. Fingindo que estava em uma saída com os amigos do trabalho, ao invés de contar a verdade. A verdade de que eu estou aqui no mesmo bar a uma semana, chorando as lágrimas de um amor que nem teve um papel assinado a dois. Um relacionamento que já tinha entrado em combustão e soprado as cinzas a muitos anos. Eu não queria ter que voltar pra casa e mostrar pra ela que nos meus olhos só quem dá pra ver é A outra. É assim que ela chama a Chama da minha vida. Como ela sabe da outra? Ela só não sabe, ela detecta e até fareja o cheiro dela. O cheiro de álcool que ela traz pra minha boca e a insensatez que traz pra minha mente. Como ela a odeia. Sabe que toda a minha vida é dedicada a Ela. É não. Foi. Eu realmente acho que já não tenho vida. Me encontro em condições precárias. Caindo em cada mesa de bar e chorando em cada ombro que me aparece.
Quinta dose:
Como eu te disse no começo. Comigo é na base do fingimento. Eu finjo que esqueci de que amo a minha antiga-vida. Ela finge que acredita nessa mentira-mais-que-esfarrapada. E nós continuamos, seguindo. Eu no bar. E ela nem sei onde. Não me interessa mais a vida dela. Já me sinto tão mal em ter que atrapalhar a dela com a minha, que tento interferir o mínimo possível. Só não quero voltar pra lá. Na verdade não quero ir pra lugar nenhum sem uma garrafa debaixo do braço. Porque eu não esqueço isso tudo e vou viver minha vida? Se eu sou um homem ou um rato? Coitado dos homens. E dos ratos de serem comparados a mim. Um ser que não sabe nem se ainda é humano.
domingo, 20 de fevereiro de 2011
Cachaça
Postado por
Izabella Verônica
às
22:22
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Very Gold
"Nos demais o coração tem moradia certa, fica aqui, bem no meio do peito. Mas comigo a anatomia ficou louca, sou todo coração!" V.M
3 comentários:
Nossa, você escreve muito bem, não consigo mais não ler seus posts, um dia isso poderia virar um livro, dica (:
Valeu Ely. Mesmo mesmo!
Irma, seus livros eu comprarei todos. ;)
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