sábado, 14 de maio de 2011

Assassinato

Escrevo-te, pois és tu, leitor, o único que queres me ouvir. Ou tu és como os outros? Os que fingem me ouvir? És como aqueles que vivem das minhas desgraças e menosprezam meus sentimentos? Estas, tu, mortal como eu, disposto a ouvir o meu choro-sangrento e sentir, pelo menos o que eu quero te passar? Estás mesmo preparado pra morrer uma morte que já me assassinou? E preste atenção, pois escolhi essa morte a dedo! Na verdade a corpo todo.  Eu conheci a minha assassina no céu. Em meio a um céu que despejava estrelas e dissipava as nuvens, transformando-as em simples borrões cor-de-gelo. Estávamos em um vôo calmo de volta para Brasília. Eu já tinha entrado naquele avião, como eu entro em todos os outros, com muito medo. Com medo e com um antídoto para ele. Um cantil de Gim Tônica. Quando eu entrei você já estava lá. Embrulhada em um cachecol vermelho e com os olhos meio assustados. Mais parecia uma criança que tinha sido roubada o ursinho-preferido. Me sentei do seu lado. Você nem me notou - não é muito diferente de hoje - continuou com o rosto entre as mãos. Decolamos. Eu peguei meu amigo-cantil e dei duas boas goladas. Quando você me segurou a mão e pediu alguns goles-de-coragem também. Conversamos aquela noite sobre os nossos medos e temores. E anos depois ainda continuamos falando deles. Alguns diferentes, outros idênticos aos daquele celeste-dia. Mas  mais culpado desse crime, foi o tempo. O tempo devorou nossas personalidades, o tempo nos transformou em máquinas (co)mandadas por ele. Passamos meses em estágio de êxtase. Em um frenesí cego de paixão. Mas o tempo transformou o eu e você em um nós. Éramos nós! Com orgulho no começo e com medo no fim. Medo de nunca mais conseguir ter um eu de novo. Medo de ter virado escravo do amor do outro. E nem sempre é "querer estar preso por vontade" (Camões). Conosco era necessidade. Necessidade de beber do mesmo cálice do outro. Da vida do outro. Nesta etapa já estávamos os dois definhando, morrendo a cada dia de migalhas-da-rotina. Até que você percebeu isso. Foi quando tudo começou a desmoronar. Lágrimas, pratos, alianças, roupas, tudo ia parar no chão. Despedaçando os nossos laços. Sei que não foi só você. Que foi o nós. Mas você foi quem teve coragem de se transformar em eu. Você que ia embora em uma madrugada e aparecia de manhã na minha porta, chorando e com a saudade-perturbadora de sempre. E eu sempre te aceitei. Porque em mim começava a nascer uma tristeza-mortal cada vez que você ia embora. Daquelas que flutuam até nas mais profundas bebedeiras. Mas já não dava mais. As nossas idas e vindas tinham se tornado mais uma parte da nossa rotina. E em uma noite, como aquela que nos conhecemos, você foi de novo. Em mais uma tentativa de separar o nosso nós e transformá-los em dois defeituosos-eus. E desde aquele dia você não voltou mais. E nem saber onde você está eu sei para tentar voltar pra você. Não porque eu ache que vai mudar, mas sim porque eu não tenho aguentado. Como disse, eu tenho sido assassinado, a cada dia que coloco os pés pra fora da minha cama-fria e sei que não vou te achar mais. E dói ainda mais saber que você não tem morrido também. Que a faca-afiada da saudade não tem te feito nem mais arranhões. Você não tem nem mais ligado e desligado em seguida. Deve ter me esquecido de vez. Feliz de ti. Porque a mim tem atingido apenas a tristeza. Eu continuo sendo o condenado. Preso no vazio que minha vida se transformou. Arrancado de mim, pelo amputo que sofri de ti! 

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"Nos demais o coração tem moradia certa, fica aqui, bem no meio do peito. Mas comigo a anatomia ficou louca, sou todo coração!" V.M

 
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